LADRÕES DE CARTOLA

Hoje vou referir aqui um artigo que escrevi há cerca de nove anos. Só tive de refrescar um ou outro parágrafo…
Deixei Coimbra, a minha Terra Natal, quando Salazar estava, ainda, no poder. Era muito nova, mas apercebia-me de que “o ar era pesado”. Isso não passava despercebido à minha sensibilidade. Em cada canto ouvia-se sussurrar contra o regime. Vivia-se mal. A fome andava escondida, porque se alguém fosse apanhado a pedir, na rua, corria o risco de ser preso/a. Hoje, temos como que um vidro transparente e podemos ver, ou adivinhar, o que vai acontecendo – até certo ponto! – com maior ou menor facilidade. Sim, até certo ponto por duas razões:
a) porque anda muita verdade mentirosa à solta…
b) porque há muitas pessoas que escondem o que se passa no seu seio familiar. Têm vergonha. Sabemos que, para uma parte da nossa sociedade, a favor e praticante das aparências, quem passa fome é como quem sofre de doença rara, contagiosa. É conveniente mantê-la afastada, ignorada até do seu círculo social. Quantas pessoas preferem o silêncio, ou eventualmente a morte, a dar a conhecer o que está a passar-se nos seus lares. Homem honrado não deve ter dívidas, mas ladrão disfarçado de qualquer coisa, do que quer que seja, pode fazer o que ele quiser, desde que lhe consintam esconder-se do roubado. Há como que uma certa protecção oferecida a quem souber roubar bem. Embora saibamos que os alertas vão surgindo e as irregularidades se vão descobrindo, o ladrão de cartola continua muito bem protegido. Sofisticado, continua a operar em vários sectores, com uma considerável desfaçatez e coragem, até porque o julgamento dos actos descobertos arrastam processos lentos e de insuficiente justiça, e “os dito cujos” continuam a operar in modo ”deixa andar”… Haverá sempre um parágrafo à lei, um disfarce, uma camuflagem de acções, etc., de tal ordem possível, que mesmo que descobertos e presos, o bom ladrão acaba por ser compensado. Ele sabe que, mais tarde ou mais cedo, vai ser libertado. Urge continuar a roubar ou terão de encontrar-lhe um tacho sedutor, trabalhando algures, num outro lugar de destaque, não importa onde, como recompensa por ter sido preso, coitadito. Não convém reduzir o número de actuantes deste calibre, até porque ele pode acabar por vir a tornar-se em mais um a sofrer da praga que só é permitida aos roubados: passar fome. Isso não pode acontecer, que será mais uma despesa para o estado.


Data da criação desta publicação:
2014-05-10