JORGE (para sempre) AMADO


Gostaria de direccionar este meu texto, não propriamente para as obras de Jorge Amado - informação acessível a qualquer pessoa através das várias fontes de pesquisa de que dispomos - mas sim para o homem que foi, o seu valor humano e aquilo que possa ter feito dele um exemplo para todos nós, independentemente de crenças religiosas ou de ideologias políticas. Interessa-me mais este lado da sua vida, na medida possível de análise do que o seu sofrimento, que inegavelmente deve ter suportado, possa ter feito dele, transformando-o ou mesmo exacerbando nele o ser humano que tanto admiro. Há dois pontos que sempre me intrigaram em Jorge Amado: a sua ideologia política e o seu grande interesse pelo universo mágico da Baía. Isto não significa, porém, que condene uma ou outro, mas aguça a minha curiosidade sobre “Quem era Jorge Amado”.

Homem de grande humildade, ele escrevia sobre vidas reais, dando-nos a conhecer caraterísticas de personalidades que criava e que representavam a realidade que o cercava. Aí podemos detectar, de imediato, a sua grande capacidade de análise e a sua enorme sensibilidade. Este facto, aliado às duas vertentes “ideologia política” e “universo mágico da Baía”, levou-me a recorrer a alguém que teve a honra de conhecê-lo de perto e cuja inegável idoneidade e capacidade de análise merecem o meu maior apreço. Trata-se do jornalista português Alfredo Mendes, que me escreveu o seguinte sobre o escritor:

“Jorge Amado retratou a realidade do povo daquele Estado, o seu amar, o seu sofrer, o
seu alegrar, criando tipos humanos imorredouros. Digamos, então, que se tratou, em versão brasileira, do nosso neorealismo, encarnado por Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol.
Não admira, assim, a sua militância comunista. Porém, bebedor de tudo quanto à volta de si gravitava, sempre seria um homem livre, logo, de livre pensamento. Cortou com o partido comunista, alinhando, porém, ao lado dos injustiçados. Mas sem rancores ou facciosismos, porquanto sempre foi um humanista. Despreocupado, senhor de um fino sentido de humor, fez-se andarilho, mergulhando no pulsar do povo.
Tendo ganhado um prémio de jornalismo, tive a oportunidade de escolher um destino Tap. Não hesitei: São Salvador da Baía - mátria e barro de Amado. Mas... como ir à fala com ele? Calhou ter um amigo que, por seu turno, era amigo de um senhor de Lisboa amigo dele. Daí a sugestão: leve-lhe uma caixinha com pastéis de Belém que ele se derreterá em amabilidades. Assim fiz. Cheguei ao hotel da Baía e telefonei para casa do escritor. Do outro lado do fio, Amado agradeceu a oferta, informando-me que iria mandar à recepção o motorista para pegar na lambarice. E pronto. Dever cumprido, com algum amargo de boca, reconheço.
Eis quando, passado um ou dois dias, ligam da recepção para me informarem de que tinha ao telefone o escritor Jorge Amado. De pronto atendi, surpreendido. Afinal, o medo que se nos apodera de que o mito, o ídolo, a pessoa que tanto admiramos não corresponda, no contacto pessoal, à imagem que dela fizemos, não tinha razão se existir. Amado, em voz arrastada, meiga, quase suplicante, pedia-me desculpa por não me ter logo recebido e que seria uma honra que o visitasse em sua casa, na Rua da Alagoinha. Com minha mulher lá fomos de camioneta até àquela morada, com justificada ansiedade e redobrada alegria.
E, veja só, num instante, sem saber quem nós éramos, se ricos, pobres, se remediados, qual a nossa profissão, Jorge Amado inverte a situação e passa ele a engrandecer-nos, a louvar-nos. Com uma t-shirt coçada, de velhos calções e uns chinelos rascos, afofa-se no sofá, pergunta pela festa de Amarante, pelos bolinhos de ovos da Lai Lai, pelos doces de Viana do Castelo de seu amigo Natário, pergunta pelas vindimas no Alto Douro.
Depois, tendo a indescritível simpatia da mulher ao lado, a Zélia Gattai, a quem, amorosamente, chama essa bruxa aí, oferece-nos livros seus, autografa-os e fica até perplexo por conhecermos as suas obras. E torna a agradecer a visita, a nossa cortesia.
Tivemos a sensação, nítida sensação, de já nos conhecermos há muitos anos, de estarmos em casa de uns tios do Brasil. Zélia afaga a cara de minha mulher "então, querida, está gostando daqui? Ainda não está moreninha, não". Beija-a, mostra-lhe peças de artesanato português, enquanto Amado continua a falar de Portugal, da Baía e dos seus santos, pais-santos. Depois, pede-me um favor: que levasse um cheque para entregar a um amigo de Lisboa, por conta de uma dívida. E, pachorrento e bonacheirão, com toda a naturalidade passou a explicar:
Quando o seu motorista fez anos de casado, ofereceu ao casal aniversariante uma viagem de núpcias pela Europa. Eles deslumbraram-se pelas capitais do Velho Continente e, quando chegaram a Lisboa, já nem dinheiro tinham para dormir ou almoçar, quanto mais para embarcar no avião. Telefonaram, aflitos. Ao que Jorge Amado, divertido, ligou a um amigo de Lisboa que os foi buscar, instalou-os num hotel com tudo pago, comprando-lhes, dias depois, passagem aérea para o Brasil.
Lá para o fim da tarde, o casal mostra-nos o jardim, descreve-nos as árvores, deixa-se fotografar, fotografa-nos. E, emocionados, cheios de calor humano, descem a escadaria (um suplício para Amado, agarrado a uma discreta bengalinha), despedindo-se de nós com um até sempre dizendo-nos que, a partir dali, passávamos a ter casa, a casa deles na Baía. Enfim, um dia encantador, vivido em família, em que as estrelas foram as visitas - que esse foi o desejo de um homem amado.”

2012-05-22
Imagem: Bertrand Livreiros